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Bem-estar na avicultura: fatos e mitos

O conceito de bem-estar animal foi, em seu início, estabelecido dentro de parâmetros de natureza muito ampla e de aspectos pouco científicos e, portanto, de difícil aceitação por países produtores. Países escandinavos, seguidos pela França, foram os primeiros a adotar conceitos mais pragmáticos de bem-estar e delinear as normas para criação de animais. Nos Estados Unidos, onde a produção de animais é uma atividade eminentemente econômica, não tendo foco substancial nos problemas éticos, a adoção do conceito de bem-estar está estreitamente vinculada com os requisitos demandados pelo mercado exterior. Isso também vem ocorrendo no Brasil.

Dentro da produção de aves, o setor mais criticado é, sem dúvidas, a criação de poedeiras, onde a questão da densidade de aves por gaiola é freqüentemente colocada em caráter de agressão e crueldade. Na União Européia a prática de criação de poedeiras livres inicialmente foi adotada, sem sucesso econômico, e hoje se busca uma solução intermediária, definida como “livre dentro de galpões”, que já vem sendo praticada com sucesso por produtores de vários países. Por outro lado, algumas práticas de manejo julgadas normais, são também questionadas por especialistas da área, como, por exemplo, a apara do bico que, quando inadequada ou mal feita (seja por inabilidade do tratador ou ineficiência do equipamento) pode provocar sangramento excessivo ou mesmo queimaduras no bico, constituindo uma atitude potencial de agressão às aves (Christensen,1984, Duncan, 1992, e Dunayer, 2001).

O fato é que o conceito de que o animal está “sentindo alguma coisa”, não se traduz necessariamente em uma experiência similar em humanos, onde estaria implícito o sentimento de frustração, medo, ou mesmo de dor. A apara do bico em frangos de corte, por exemplo, é comprovadamente uma atitude de manejo que reduz o canibalismo e minimiza o estresse social, enquanto reduz a mortalidade em fase de criação de poedeiras. Já se conseguiu provar cientificamente que, no tocante à nutrição, não há prejuízo para aves debicadas.

Para a definição do bem-estar animal é sugerido um perfil de cinco liberdades que devem ser atendidas: liberdade psicológica (de não sentir medo, ansiedade ou estresse), liberdade comportamental (de expressar seu comportamento normal), liberdade fisiológica (de não sentir fome ou sede), liberdade sanitária (de não estar exposto a doenças, injúrias ou dor), liberdade ambiental (de viver em ambientes adequado, com conforto).

A literatura internacional, na área de Medicina Veterinária e Zootecnia, está repleta de referências sobre o tema e sobre definições já aceitas, principalmente com o propósito de esclarecimento informativo. Uma definição bastante utilizada é a de Broom (1991), que descreve o bem-estar como a habilidade do animal de interagir e viver bem em seu ambiente. Assim como esta definição está correta, existem outras semelhantes que também são pouco úteis na questão de dar subsídio a decisões práticas, ou de como se devem utilizar os animais como parte de um processo econômico.

A definição não é clara e implica em que o animal deva estar normalmente em duas situações antagônicas: ou está em bem-estar ou não, ou seja, o animal ou vive bem no ambiente do alojamento, ou simplesmente não está bem, quando se sabe que há certamente diferentes graus de adaptação aos extremos pleiteados.

Bem-estar: conceitos e mitos

A conceituação de bem-estar envolve as questões físicas e mentais e a maioria das preocupações estão centradas em como o animal “se sente”, quando exposto a um determinado tipo de confinamento ou manejo, ou ainda a determinadas práticas (por exemplo, corte de dentes ou apara de bico). Normalmente encontram-se os conceitos de bem-estar divididos em três aspectos: o legal, o público e o técnico.

Os conceitos legais são estabelecidos pelo sistema legal/judicial, que define padrões mínimos de normas que possam ser seguidas e aceitas pela sociedade e corretamente interpretadas pelo sistema legal, no caso de disputas. O público envolve o conhecimento da sociedade civil, a empatia e o ativismo face às questões relacionadas a animais, e, o técnico é baseado em informações científicas que advém de medidas efetivas de bem-estar, expressas por comportamento específico, aspectos fisiológicos e respostas produtivas.

Um outro aspecto importante é exatamente onde se devem observar as condições de bem-estar. Com os novos conceitos de ambiência, onde as questões térmicas se associam aos aspectos de qualidade do ar (poeiras, gases, etc) e ruídos, além das boas práticas de manejo, há que se considerar também a observância de condições ideais de alojamento relacionadas a estes itens.

Naturalmente que as condições de sanidade e nutrição também devem estar de acordo com o ótimo indicado. Desta forma, quando se estimam hoje a situação ideal de alojamento, se está sinalizando que todos estes pontos devem ser atendidos, sob pena de se considerar a produção em algum índice específico de crueldade.

Não se pode esquecer também das etapas intermediária entre a criação e o abatedouro, ou seja, as condições de transporte. No caso de dados de abate no Reino Unido, sabe-se que três fatores distintos contribuem para a mortalidade no transporte ao abatedouro, qual sejam: condições de saúde no galpão (25%), injúria física (35%) e estresse térmico (40%) (Wathes, 1998). Portanto, a ambiência no transporte afeta significativamente as perdas no âmbito geral. Pode-se então estimar que as condições ideais de bem-estar devem ser aplicadas não somente ao alojamento, mas também a todo o processo produtivo, do nascimento ao abate.

Hoje já se conhecem alguns indicativos reais de bem-estar, entretanto muito dos conceitos que se preconiza em países desenvolvidos, ainda estão baseados em mitos, e pouco há de fato comprovado. O caso específico da presença de amônia no ambiente de alojamento é interessante de ser comentado. Estudando a aversão a amônia pelas aves o grupo de pesquisa de Silsoe/Bristol (Wathes, 2002) conseguiu comprovar que estes animais, embora tenham preferência por ambientes com menor concentração de amônia no ar, se animais menores tiverem que escolher entre ambiente com altas concentrações de amônia e calor, darão preferência ao calor (questão da sobrevivência) em detrimento da qualidade do ar.

Na verdade muitos mitos estão sendo esclarecidos no âmbito científico e espera-se que, nestes próximos cinco anos, as verdades surjam para esclarecer aos produtores, questões hoje bastante nebulosas.

Considerando o comportamento social, é sugestivo que a freqüência e a intensidade de interações agressivas, o total de coesão social e a extensão de vícios sociais podem ser utilizados para avaliação de bem-estar. Durante estresse térmico, por exemplo, as aves alteram seu comportamento para auxiliar na manutenção da temperatura corporal dentro de limites normais.

Ajustes de comportamento podem ocorrer rapidamente e a um custo menor do que os ajustes fisiológicos. Outro ponto de reconhecimento e medida de bem-estar pode ser pelo chamado comportamento chamado “agonístico” das aves adultas alojadas. Autores (CAST, 1997; Martrenchar et al 2000; e Marx et al 2001) definem este comportamento como atividades ligadas a ações como: comportamento ofensivo: ataques simultâneos entre aves; ataque direto com o bico sobre a cabeça de outra ave; postura ereta de afrontamento; corrida atrás de outra ave; e confronto face a face; comportamento defensivo: a corrida de ave se distanciando de outra; uma ave evitando a proximidade de outra; a ave correr de outra com medo aparente; e postura de submissão.

O comportamento agressivo é definido como a somatória da visualização comprovada das duas situações, tanto a ofensiva como a defensiva, sempre com um grupo de aves em cada lado da situação específica. Em estudo observacional sobre grupos de aves adultas, autores encontraram que estas tendem a agrupar-se e, se houver a presença de um macho as fêmeas tendem a agrupar-se em torno deste, enquanto este tende a defendê-las com uma atitude normalmente encontrada em animais na natureza, contra predadores ou outros machos.

A média total de comportamento dito “agonístico” encontrada pelos pesquisadores foi maior no grupo de aves sexadas (fêmeas), quando comparada com o grupo misto, principalmente no item de comportamento agressivo. Uma observação interessante apontada (Martrenchar et al 2000) foi que houve pouca interação agressiva entre os machos constantes do grupo misto. Outro relato importante é que o comportamento agressivo esteve relacionado parcialmente a outras condições de estresse, como calor, o que indica claramente que o ambiente térmico é um importante indicador de bem-estar.

Valor econômico do bem-estar

As mudanças que se propõem para adequar as condições ótimas de bem-estar na produção de aves têm um grande impacto no custo de produção. A principio não deveria ser complicada a estimativa destes custos, dado que conhece os valores de investimento em instalações e demais técnicas relacionadas ao manejo adequado. Entretanto, dependendo da adoção e registro de determinada condição de produção, atingir certo nível de bem-estar requer investimentos distribuídos no ciclo produtivo, nem sempre de fácil previsão.

Por outro lado, o valor econômico do bem-estar nem sempre é manifestado em forma monetária e impacta em toda a cadeia produtiva. Quando se faz algum benefício ao animal (manejo adequado, nutrição, etc) se computa esta ação como necessária e se entende igual quando se agregam as condições de bem-estar (“ser bonzinho” aos animais vê-se quase como uma obrigação, sob o ponto de vista do consumidor). Ninguém reconhece nenhuma relevância em “ser bonzinho” a um trator, somente se trata para que este desempenhe suas funções da melhor maneira possível. Nisso reside a grande diferença conceitual de produtividade e bem-estar.

Os estudos sobre bem-estar animal sugerem uma multidisciplinaridade importante dentro dos aspectos pesquisados, pois abrangem temas sobre nutrição, saúde, desconforto e dor, fisiologia do estresse, vitalidade, comportamento, liberdades, ambiência, etc, com a hipótese de que inferência positiva nesses assuntos leva a uma melhor condição de bem-estar. Isto leva a sérias falhas na resolução dos problemas relacionados com decisões ligadas a bem-estar, pois não se conhece com precisão o nível ideal e interativo dessas variáveis (ou combinação delas) para não se ter uma situação “ruim” de bem-estar.

Logo, as questões que surgem são estas: Alcanço necessariamente melhor condição de bem-estar quando tenho melhor alojamento ou melhor nível de saúde? Mais criticamente, quanto compensa ter menor controle do ambiente de alojamento para equilibrar com uma nutrição adequada, em termos de bem-estar? Em termos operacionais nota-se logo que definições, palavras ou expressões como “estado de”, “habilidade de” e “bom” ou “ruim” não refletem necessariamente uma situação específica e não servem, de maneira adequada para se estabelecer nível ou padrão.

Conclusão

Não se pode fugir do fato que, se o animal está em boas condições ele produz mais. Como nas definições das cinco liberdades não existem “valores” intermediários, é quase inevitável que durante o processo produtivo, ocorram situações de desconforto, medo ou incômodo, mesmo que temporariamente.

Quanto às instalações, a verdade é que a grande maioria de nossas edificações abertas e que usam ventilação e nebulização, permitem melhores condições de alojamento do que aquelas em clima temperado, totalmente fechadas, com altos teores de concentração de gases e poeiras. E isso não vem sendo valorizado pelo nosso mercado comprador. O que se precisa negociar agora são os limites da aplicação dos critérios gerais, nas condições específicas do Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Broom, D.M. 1991. Animal Welfare: Concepts and measurement. Journal of Animal Science. 69:4167-4175.

CAST. Council for Agricultural Science and Technology. The well being of agricultural animals. CAST, Ames, IA. 1997

Christensen, K.. Beak trimming: a review of procedures. Poult. Digest (Sept.): 1984, 374-375.

Dunayer, J..Feeding on flesh, milk, eggs, and lies. In Animal Equality, 125-147. Derwood, Maryland: Ryce Publishing. 2001

Duncan, I. J. H. Measuring preferences and the strength of preferences. Poult. Sci. v. 71(Apr.): 658-663. 1992.

Martrenchar, A., D. Huonnic, J.P. Cotte, E. Boilletot And J.P. Morisse. Influence of stocking density, artificial dusk and group size on the perching behaviour of broilers. Br. Poult. Sci. 41 (2000), pp. 125–130.

Marx, G., J. Leppelt E F. Ellendorff . Vocalisation in chicks (Gallus gallus dom.) during stepwise social isolation. Applied Animal Behaviour Science 75(1): 61-74. 2001.

Wathes, C.M.; Phillips, V.R.; Holden, M.R.; Sneath, R.W.; Short, J.L.; White, R.P.; Hartung, J.; Seedorf, J; Schröder, M.; Linkert, K.H.; Pedersen, S.; Takai, H.; Johnsen, J.; Groot Koerkamp, P.W.G.; Uenk, G.H.;Metz, J.H.M.; Hinz, T.; Caspary, V.; Linke, S. 1998. Emissions of aerial pollutants in livestock buildings in Northern Europe: Overview of a multinational project. Journal of Agricultural Engineering Research, v.70, n. 1, p. 3-9.
Wathes, C.M., J.B. Jones, Kristensen, H. H., Jones E.K. M., Webster, A.J.F. Aversion of pigs and domestic fowl do atmospheric ammonia. 2002. Trans. ASAE Vol 45(5):1605-1610.

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